A Dona Glória ligou o microfone com a solenidade de quem vai dar a extrema-unção ao bom senso que, naquela manhã de quarta-feira, já tinha morrido e sido enterrado com missa cantada.
— Bom dia aos meus ouvintes vivos. Os outros, se escutam, é sinal que Deus anda distraído.
O tempo estava abafado, e a política, pior ainda.
— Ouvi ontem um senhor na televisão a falar como quem mastiga palavras caras com a boca cheia de promessas. Dizia que o país vai bem. Pois vai…vai como o meu joelho: quando não dói, range.
Fez pausa. Coçou o queixo. Limpou a garganta como quem afasta a poeira da memória.
— E agora falam-me de criptomoedas. Moedas que não se tocam, que só existem na internet, e que valem porque alguém disse que sim. Isto, para mim, é como o Gaspar (o meu primeiro namorado), prometia muito, e depois desapareceu com o dote.
Aquilo não é dinheiro. É fé digital.
Entre dois goles de chá de poejo, entrou a rubrica das queixas do povo.
Hoje era só uma: o machismo, esse fungo que cresce bem na sombra da ignorância.
— Tive cá o Ti Joaquim, a dizer que mulher que fala alto assusta os homens. Pois que assuste. Se a voz da mulher te amedronta, imagina a liberdade dela. Machismo aqui não é tradição, é atraso. E de atraso já basta o autocarro que nunca passa.
Depois, como quem dá uma dentada na língua para não dizer tudo, largou a última:
— E para quem pergunta da Dona Esperança, sim, ela hoje vestiu azul. E bem fez. O Armando morreu há três dias, mas ela está viva. Luto não é uniforme, é memória. E se ele era tão bom marido, como dizem agora, então que a deixe vestir-se como quiser.
Que no céu não há fiscais da cor.
E terminou com uma quadra à moda antiga, cantada sem pressa:
Trago a língua bem lavada,
com vinagre e com razão.
Quem não gosta do que digo,
que mude de estação.