Na aldeia, o apagão veio sem aviso, mas a Dona Glória já tinha a língua carregada.
[SOM DE MICROFONE A ABRIR]
Bom dia, meus ouvintes vivos. Aos outros... se estiverem a escutar, é porque Deus ainda não reparou que deixaram a porta do além entreaberta.
A manhã ia rija, como deve ser:
O senhor Joaquim da venda, que ontem já o davam morto, hoje estava sentado ao sol a contar moedas.
A Lurdinhas, que passou a noite fora, entrou em casa de ténis na mão e vergonha no rosto.
E a Ti Maria da horta, em vez de varrer a soleira, passou a manhã encostada à porta, a espreitar a vida dos outros.
Tudo no seu lugar.
Até às onze e meia.
Às onze e meia da manhã, cortaram-nos o pio. Sem aviso, sem cerimónia. Apagão geral.
Luz foi-se, electricidade evaporou-se, e o arroz ficou a meio lume, ou pior, sem lume nenhum.
Olhei à volta e percebi: silêncio, mas não do bom. O silêncio que vem com tempo demasiado livre, o que é suspeito. É como ter dinheiro a mais na conta, ou há engano, ou há desgraça.
Pensei logo na Ti Arlete. A mulher liga a torradeira, o microondas e o ferro de engomar na mesma tomada, com fita-cola à volta. Mais dia, menos dia, ainda frita o bairro inteiro e culpa o cão.
Mas claro… há sempre teorias.
1- A dos ambientalistas
Desligaram-nos para salvar o planeta. Quiseram dar-nos um banho de ar puro. O que se sentiu foi antes o cheiro a estrume fresco. Grande bosta de milagre.
2- Truque para vender carros
Terá sido um daqueles anúncios com muito barulho e pouco travão? Como slogan algo do genero “Confie no motor”. Mais confio eu no burro da Ti Bina, que não arranca sempre, mas nunca me deixou a pé.
3 - Iluminados do LinkedIn
Acordam às cinco, bebem água morna, postam frases tipo “no escuro encontrei-me”. Terão sido eles os responsáveis que encontraram uma desculpa para vender um curso de coaching à luz das velas?
E claro, ouvi ainda outra:
4 - Aliens
Vieram sugar-nos o tutano para meter nas naves deles como combustível. Azar o deles, o que há por cá dentro das cabeças é mais vento do que sumo.
E eu? Fiquei com a colher de pau na mão, o arroz colado ao tacho e o caldo da paciência entornado.
E agora calo-me. Que quem muito fala, arrisca-se a ter razão.
Fecho com uma moda final , antes que nos calhe o apocalipse:
Quem varre cedo a soleira,
tem menos vizinho à espreita.
Mas quem varre sem barulho,
ouve mais do que aproveita.