O Evangelho segundo o pente fino
Uma meditação sobre piolhos, paranoia e a vida adulta em carne viva.
Primeiro foi só um formigueiro tímido, desses que avisam, mas ninguém ouve. Julguei que fosse stress. Ou remorso, ou castigo por usar aquele champô de supermercado comprado em promoção, que prometia brilho e volume, mas trazia um pacto com o diabo escondido no rótulo.
A comichão cresceu. Persistente. Rítmica. Comecei a coçar. Primeiro, como quem esfrega um pensamento indesejado. Depois, como quem tenta escavar a própria alma. Às tantas, só queria tirar o crânio e deixá-lo a marinar em vinagre.
Descobri-os no terceiro dia. Uma milícia, tinha uma colónia inteira a marchar pelo meu escalpe como se tivessem fundado ali a nova Jerusalém. Piolhos. Em plena idade adulta! Uma infestação sem inocência.
Comecei a ligar pontos que ninguém me pediu para ligar. E se não fossem piolhos? E se fossem nano chips de IA? Uma operação secreta do Vale do Silício em parceria com a Nestlé para controlar os meus desejos por chocolate às 3 da manhã?
Os sintomas não deixavam dúvidas: insónia, pensamentos aos gritos, vontade de fugir de mim. Sentia os zumbidos a escorrerem-me do crânio como larvas de angústia. Comecei a falar com o espelho, a ameaçar o chuveiro, a desconfiar do candeeiro da cozinha.
A minha cabeça transformou-se num centro de tortura barroca. O pente fino era a guilhotina dos parasitas e o meu couro cabeludo, o palco de uma batalha perdida. Cada passagem fazia um som seco, como se arranhasse os ossos da vergonha. O cheiro do champô misturado com o couro inflamado lembrava vinagre sobre carne crua. Cada piolho esmagado libertava um segredo antigo, cada crosta uma lembrança mal enterrada.
Tentei agendar uma pausa para a crise, mas a vida adulta não dá lugar à comichão. Nem os piolhos têm direito a baixa médica.
Fiquei com feridas. Reais e metafóricas. O escalpe em carne viva, com a alma meio despida. Percebi, então, que o problema não era só biológico. Era existencial. Era a encarnação literal do que se sente quando se vive a desejar a próxima coisa sem nunca coçar o agora.
Crescer é aceitar que tudo coça. A conta bancária, os sonhos abortados, o crânio. Não há cura, só ciclos, pentes finos e um certo prazer doentio em catar as minhas assombrações com as unhas. E mesmo depois de tudo, ainda sonho que ficou um escondido atrás da orelha, só para me lembrar que não há descanso para quem pensa demais.
Ao ler o teu texto lembrei-me das fases em que tive piolhos durante a minha existência. Logo desde o infantário. E agora na vida adulta quando os tive, foi quando trabalhei como auxiliar numa escola de primeiro ciclo com jardim de infância, em que nós auxiliares ficámos todas assim - centros de tortura barroca, como tu dizes. Mas o pior pior, foi no quinto ano, em que me lembro de a minha mãe colocar o vinagre, e uma série de produtos e lá trás do couro cabeludo, eram só feridas. Um horror.
Eu fico pensando que os piolhos -assim como o capitalismo-existem desde a época de Jesus e ainda não foram combatidos