Temos que sair em dois minutos.
Telefone. Chaves. Carteira. Casaco. As miúdas pela mão. Lancheira. Mochilas. Cabelo
penteado? Sim, num coque.
Birra (afinal devia ter sido tranças). Tira o casaco. Atira-se a mochila num pranto e lá vai para o ar o caralho da lancheira.
Os morangos já são smoothies (diz que é mais chique). Desfaz-se o coque. Penteia-se de
novo.
Abre-se o cabelo ao meio, faz-se uma trança de um lado, enquanto a outra me melga o
juízo porque a irmã está mais bonita que ela.
Faço trança do outro lado, falta um elástico. Digo à miúda para segurar.
Vou ao quarto procurar o elástico. Ganchos, bandoletes, pulseiras de unicórnio e, lá no
fundinho da gaveta, nasce um elástico ainda com restos de apanhados de cabelos
passados.
Chego com o elástico, já com meia trança desalinhada, mas vai assim na mesma.
A outra já se descalçou e gritou em plenos pulmões, como se estivesse num banho de
água gelada, porque a costura da meia a irrita e parece ter carrapatos.
Já só vislumbro uma meia. Volto ao quarto para procurar o par.
Nada. Nem o par, nem mais nenhuma meia.
Vasculho na pilha de roupa por dobrar. Saem, tipo enxames de abelhas, meias às dúzias, mas nenhuma condiz.
Vai com dois rosas desmaiados, mais ou menos a condizer.
Não importa que uma tenha a Branca de Neve e a outra a Cinderela. Nunca ouvi dizer
que eram de gangues rivais.
Segue para bingo.
Agarro a mais pequena endiabrada, como se lhe estivessem a fazer um exorcismo no
meio da guerra da Tomatina.
Uma já está, falta a outra. Faço tanta força com a irritação que já devo estar roxa com os nervos e a pálpebra a estremecer.
Dou três berros para dentro (que hoje em dia os pais só podem reclamar com o grilo
falante que cá habita, senão aparece a CPCJ).
Calço um sapato, depois o outro, que sai em segundos porque a meia mexeu meio
milímetro.
Voltam as duas a chatear-me tipo praga bíblica de gafanhotos.
Lá entra o último sapato, como se fosse a noiva por quem todos esperavam há duas
horas, no meio da braseira de agosto na Amareleja.
Está pronta a fera. Desaparece a outra. Chamo e digo que estamos atrasadas.
Lá vem ela, toda rebolada. Já veste outra coisa que nem bate com nada.
Avança assim mesmo, que nunca se sabe se pode precisar de entrar no Chapitô.
Calça-se com dois berros (já não os conseguia conter, pareciam o génio da lâmpada ali
trancado, apesar de só terem passados dois minutos).
Chora e grita mil vezes que sou má e que não a percebo.
Empurro-as porta fora.
Tateio: telefone (check), casaco (check), lancheiras (check), mochilas (check), eu
(check).
Bato a porta.
Levo-as à escola como se nada fosse. Como se viessem de uma casa feita de algodão
doce.
Cantam o APT, APT e mais não sei quê. Abraço ao portão, beijo e um “Até já, mãe”.
Volto para casa já a fazer a lista de tarefas do dia... começo pelo e-mail, depois o artigo,
segue para o plano, call, almoço...
Bom, bom era ficar o dia sem nada fazer. Já me sinto como se tivesse feito 24h de turno.
Interrompo o pensamento e rebento a minha própria bolha com um “É a vidinha”.
Não nasceste rica, nem com feitio para dondoca.
Chego a casa. Tateio o bolso do casaco... depois o outro... os dois bolsos da frente das
calças, os de trás...
Esqueci-me das chaves.
Pelo menos trouxe o telefone.
Ligo ao Sr. Manuel (o que abre portas com uma radiografia ao tórax). Já me abriu a casa
mais vezes do que o meu ex me abriu o coração e cobra quase o mesmo.
Mais um dia. Mais um em que não vou ter tempo para me salvar a mim própria.
E o pior é que já nem estranho…
Já estava com saudades dos seus textos ligeiros e divertidos !!!!