Estás para aí pasmada e havias de rir-te com a quantidade de gente que veio, ora porra.
Trouxeram-te flores — as que te davam alergia. Até parece de propósito.
Olha, lá vem o padre dizer que temos de fechar a capela.
Já não é como antigamente, em que se velava o corpo o dia todo.
Já não te posso ligar para dizer que perdi, outra vez, as chaves.
E que, uma hora depois, afinal estavam no bolso.
Já não vamos discutir aquele golo falhado à boca da baliza, que claramente ficou “enquinado” porque ele usava a camisola fora dos calções.
Já não te posso mandar aquele meme sobre ser segunda, ou terça, ou sexta — ou que merda, o fim de semana já passou.
Já não podemos trocar impressões sobre aquele podcast de merda, cheio de lugares comuns, que é tão mau, mas tão mau, que parece bom.
Piadas de atirar ao chão e referências doidas.
Pior de tudo:
Já não vou poder usar a tua conta da Netflix.
Nem deitar fora aquela tua canja horrível, que me levavas sempre que me sabias doente.
Acho mal teres morrido sem me avisares.
Logo agora que encomendei aquelas estantes do IKEA que eu adorava, mas adorava ainda mais que tu montasses para eu não ter trabalho.
Por um lado, até é bom.
Já não me vais irritar naqueles domingos de manhã (para mim, quase madrugada), em que não tiravas o filho da puta do dedo da campainha até te aparecer à porta com aquele robe do Harry Potter, cabelo desgrenhado e saliva ao canto da boca.
E ver-te toda fresca, pronta para uma caminhada leve de 5 km com nortada a rasgar a cara.
Vais fazer-me falta.
Olha, saiu um novo episódio do Cenas Totil Baril.
Vou ouvir e fingir que, no fim, te vou ligar.
Cinco minutos a pé.
Uma eternidade de silêncio.
E tu, sem dizer adeus.
Velórios...só de ouvir tal palavra, tão cinzenta, aliás preta fazemos muita coisa menos rir. E logo nas primeiras linhas, é isso mesmo que acontece - rir. Este texto está magnífico!! Ri do inicio ao fim. Que texto tão delicioso!
Nossa, fiquei imaginando uma versão em áudio dessa crônica 😍