Muesli de autoflagelação e pensamentos soltos
Para mastigar devagar, entre culpas, panquecas e outras misérias do eu.
Mastigar a própria língua
Escrever.
Ato subconsciente.
Displicente, eloquente.
De quem decide virar aquela gaveta de miscelâneas e despejar tudo.
Autoflagelação em formato purgatório de caracteres, com culpas e receios pregados na parede?
Autocomiseração?
Ou, no fundo, ato masturbatório do ego, que se inflama e enrubesce a cada like?
O Gordo que saiu do leite
Acho que hoje o cheiro a panquecas, numa manhã domingueira, é o equivalente às torradas em pão alentejano da minha infância.
Só que agora o leite tem de ser sem lactose. Nada daquele leite inteiro (já nem se escreve "gordo").
O fat shaming já chegou aos laticínios.
Engano com vela
Quis ver mais longe, mas não conseguia. Pus os óculos. Esperei que o desfoque passasse. Era só um barco ao fundo. Um ponto mudo. Um engano com vela. Volto ao livro secante. Nem murmúrio de traições alheias a salvar o dia.
Pequenas coisas que não salvam o mundo
Não tenho fé em grandes gestos. Não sou das que esperam pela epifania no meio da tempestade. Mas já fui salva, (de mim, dos dias, do mundo) por um cappuccino com espuma cremosa e por um par de galochas com olhos de sapo.
Beber aquele cappuccino e ficar a comer a espuma como se estivesse a saborear a única parte do dia que não me exige nada.
Coçar as costas quando se tem comichão é um orgasmo sem culpa, sem pedido, sem esforço.
A palavra “indubitavelmente” (que não uso) mas gosto de saber que está ali, altiva, como se soubesse mais do que eu.
O cheiro do sargaço, que me diz que o mundo existe mesmo quando não quero estar nele.
Aquele gargalhar que chega a faltar o ar. É raro. Mas quando vem, parece que tudo desentorta por segundos.
Documentários de seitas religiosas. Há algo de reconfortante em ver gente mais perdida do que eu.
Factos estranhos e curiosos que não faço ideia de onde vieram, mas estão cá guardados como se fossem herança de família.
Flashbacks aleatórios, tipo aquele em que levei umas galochas com olhinhos de sapo para a escola e achei que aquilo ia mudar tudo.
Não mudou. Mas lembro-me.
Os cadernos onde treinava a caligrafia durante as férias de verão, acreditando que uma nova letra podia trazer um novo eu. Não trouxe, mas tentei.
Autocolantes do Baywatch, (não me perguntes, aceita só).
Raramente sei letras de músicas, mas consigo estar com uma estrofe em loop durante três dias.
Ir ao supermercado a recitar mentalmente a lista e sair de lá com tudo menos o que era preciso. E ainda assim achar que foi produtivo.
Dizem que são as grandes coisas que nos salvam. Eu digo que é isto. Espuma de café. Seitas alheias. Caligrafia de esperança.
E a absurda persistência de continuar a tentar.
Disclaimer — Ins(pirações)
Não sei se interessa a alguém, mas para me lembrar no futuro do que me levou a escrever cada texto, vou começar a deixar aqui as ideias que os pariram.
Quem sabe, um dia, dá jeito para as consultas de psicanálise que não faço e provavelmente devia.
1- O primeiro texto surge da velha questão do escritor, ou no meu caso pseudo, com muitas aspas claro. Muitas vezes coloco a questão do por que escrevo, quando, como e para quem. Muitas vezes acho que tenho a resposta, para depois dentro de segundos todas as dúvidas regressarem. Talvez escreva porque duvido de mim.
2- O segundo texto surge quando fazia panquecas para as miúdas numa manhã e enquanto esperava a massa estar pronta voltava à infância de torradas com Planta.
3 e 4 - Partem de exercícios de escrita, para trabalhar o músculo. Um claramente sobre nada e outro sobre as memórias que às vezes vou buscar para preencher os dias.
Amei os textos! Especialmente o primeiro, mas dos outros também. Você realmente mergulha fundo dentro da sua própria mente ! Hahaha eu nunca parei pra pensar no porquê de escrever!
Amo a palavra “miscelâneas” ❤️